Por uma vida de lugares

Opinião
16 Julho 2020

André Barata

Vivemos tempos estranhos. Onde quer que estejamos é como se estivéssemos de passagem, mesmo se parados, mesmo se confinados. Estamos em espaços, mas tudo pede que não os habitemos, que não façamos deles lugares, como se fazer de um espaço um lugar fosse um abuso, uma apropriação, que obstrui o direito a melhores usos. Simplesmente fazer lugar é tão fundamental à vida como respirar. Não dá como não nos apropriarmos do ar que respiramos, dele retirar algum oxigénio e devolvê-lo em seguida. Há que confiar que o mundo esteja a contar com isso, desde que não desfaçamos o mundo entretanto a ponto que deixemos de poder contar senão connosco mesmos. É fundamental não cair na tentação de contarmos apenas connosco próprios.

Fazer lugar não é sequer só um assunto do espaço e da sua racionalização eficiente. É também um assunto de tempo e da mesma espécie de racionalização. O lugar que se habita é o lugar do hábito, do mesmo espaço que se repete ao longo do tempo, a que se retorna. Por isso, os lugares que habitamos, de reencontro com um espaço e um tempo, podem ser a casa, o lugar de trabalho, a casa onde crescemos, o lugar da serra onde fizemos memória importante. A memória de cada um é um mapa de lugares. Desses de espaço físico, mas também lugares de vida e consciência, que também habitamos. Habitamo-nos uns aos outros, nesse sentido de reencontro da amizade, de encontro com a singularidade do outro a que precisamos de voltar. E é assim que visitamos sentidos constituídos no passado e experiências havidas no passado, com o cuidado de quem as cultiva. A cultura é o trabalho incessante de manter vivo o hábito que faz da literatura, da arte, dos filmes e séries que vemos, disso tudo, lugares.

A vida de cada um é o nome do lugar que é cada um, lugar de uma coleção de lugares vivos, alguns singulares, alguns partilhados, alguns comuns. A comunidade é outro nome de lugar – da solidária convivência de vidas de cada um que são lugares nos lugares que nos transbordam como cultura, natureza, mundo.

Mas os tempos que vivemos são um deserto de lugares. É claro que os temos, ou não viveríamos, mas é como se fosse uma resistência dos lugares contra uma tendência de deserto. Vivermos a resistir é sobreviver apenas. Os lugares deslassam-se em espaço e tempo abstractos, transformados em medida que se conta e com que se fazem contas, valor por metro quadrado, por vezes tanto valor que se justifica mudar de escala e fazer as contas por centímetro ou milímetro por quadrado, e juros e dívidas que, pelo contrário, parecem exprimir-se para todo o sempre, como condenações ou prémios perpétuos. Os lugares desfeitos são substituídos por uma distopia de eficiência utilitária de tempo sem fissuras e de espaço compartimentado.  O confinamento imposto pela situação de emergência de saúde pública foi somente um passo mais de uma racionalidade de confinamento que já conhecíamos.

Comecei por dizer que vivemos tempos estranhos. Mas o estranho é que são tempos em que vivemos menos e sobrevivemos mais. Não vivemos bem enquanto não pudermos fazer lugar. Precisamos de estranhá-los. Como dizia o Pessoa de um refrigerante, primeiro estranha-se, depois entranha-se. É esta metodologia simples que nos serve aqui. Não dar por natural que nos digam que espaço e tempo, pessoas e natureza, cultura e imaginação, tudo são recursos sujeitados à mesma lei da sobrevivência. Estranhar isto, contrapor outra imaginação, outra ideia de natureza, uma contra-cultura, um estar diferente. E depois entranhar, que é outra maneira de dizer: deixar que o estranho faça lugar em nós. Precisamos de perceber que vivemos tempos estranhos para sabermos como fazer deles mais e melhor vida, mais e melhor lugar.