Nem anjos nem diabos

Opinião
22 Julho 2021

Teresa Nobre Correia

O destacável da Revista Volta ao Mundo, N.º 10, de Agosto de 1995, recordava uma lenda que situa na Índia a origem do povo cigano, numa sociedade dominada por feiticeiros, imbuída de sentido de respeito e obediência a regras e aos mais velhos, onde pontificava Tchen. A chegada dos exércitos invasores teria sido prevista por este feiticeiro, mas mal recebida pela comunidade, cujos opositores o expulsaram. Foi então que ele rogou uma praga: “Andarás, errante, pela face da Terra; nunca dormirás duas vezes no mesmo sítio e nunca beberás água duas vezes do mesmo poço”. O facto é que os exércitos vieram, devastaram, destruíram e expulsaram, como Tchen previra: Alexandre, O Grande; Gengis Khan; e outros. Os ciganos terão partido, e passado a errantes e a nómadas, sem pátria e sem religião, sem dirigentes políticos, transportando, porventura, fortes traços fisionómicos e culturais hindus. Andaram pela Boémia, Arménia, Hungria, Rússia, Roménia, Egipto, Grécia… Chegaram a todos os cantos do Mundo, e, claro, a Portugal.

           Julga-se que terão entrado no nosso país na segunda metade do século XV. Mas a sua vida em Portugal esteve sempre sujeita a discriminação social e até legislativa. Foram vários os reis que legislaram contra eles, começando em D. João III (1523) que determinou a sua expulsão do território, passando pelas várias vezes que foram obrigados a embarcar nas galés rumo aos territórios ultramarinos, até aos anos oitenta do século XX em que ainda versava no Regulamento da GNR a necessidade de vigiar “os nómadas”. Destaca-se, pelo contrário, em momentos de maior abertura da nossa sociedade, a legislação favorável à igualdade entre os povos: em 1822 e em 1826 a Constituição e a Carta Constitucional que eliminam as desigualdades fundamentadas na raça, reconhecendo a cidadania aos nascidos em Portugal, deixando de ser punida a condição de cigano; e em 1980, por determinação do Conselho da Revolução saído do 25 de abril de 74, apoiado na Comissão Constitucional, é retirado ao Regulamento da GNR a referência aos ciganos.

           A literatura, desde o século XVI, tem revelado algo sobre este povo que era, ao tempo, nómada. No Cancioneiro Geral de Garcia de Resende há uma poesia de Luís da Silveira que alude a um cigano. Em 1521, Gil Vicente fez representar em Évora a Farsa das Ciganas. Estas figuras foram também motivo de inspiração artística para pintores, Matisse pintou cenas de ciganos (1902), para músicos, Bizet compôs a ópera Carmen onde circulam várias mulheres ciganas, para escritores como Cervantes que escreveu  A Jitanilla.

           Em Portugal, Miguel Torga, no seu Diário, datado de 7 de outubro de 1954 disse:  “Ciganos. E mais uma vez a minha raiz humana estremeceu. São eles que me dão sempre a medida absoluta da liberdade que não tenho e por que suspiro. Anarquistas em espírito e corpo, lembram-me príncipes do nada, milionários do desinteresse, sacerdotes da preguiça, ampulhetas obstinadas onde o tempo não se escoa. Comem a podridão, vestem-se de absurdo, são marcianos na terra. E a vê-los caminhar na poeira do transitório, é a imagem do homem ideal que vejo passar, lírica e desdenhosa“.  Manuel Alegre escrevia assim, no texto “Rosas Vermelhas”, em A Praça da Canção: “Em frente era o largo, a velha árvore do largo dos ciganos. Quando chegava o mês de Maio, eu abria a janela e ficava bêbado desse cheiro a fogueiras, carroças e ciganos”.

           Hoje em dia, já não são errantes nem se deslocam em carroças, uma vez que são poucos os que ainda mantêm uma vida nómada, mas dificilmente nos separamos desta imagem do cigano que chega e parte com uma liberdade invejável para quem vive agrilhoado e tolhido na vontade, prisioneiro de rotinas impostas por terceiros. Foi o que aconteceu com Ruy, o menino do livro de Sophia de Mello Breyner e Pedro Sousa Tavares, Ciganos, publicado em 2012. Estava deitado ao fundo do jardim da sua casa, num dia em que tudo “lhe parecia irremediável”, “preso nos muros da sua, nos horários dos relógios e nas ordens da família”, quando escutou “um ruído que vinha de fora (…) um ruído de festa”. E este som dos ciganos que tinham chegado à cidade impeliram-no a abandonar a segurança do lar e a ir ver o que estava para além dos muros. E o que viu foi maravilhoso: gente que tocava, cantava, dançava, meninos que se exibiam num arame de circo, gente de uma “beleza inquietante que o atraía e angustiava”.

           Estes sentimentos contraditórios de Ruy são, afinal, reveladores do que expõem os ciganos ainda nos dias de hoje: a atração pela ligação forte às tradições, à cultura ancestral a que se mantêm fiéis, numa era em que as mudanças parecem ser demasiado rápidas, impossíveis de acompanhar por este povo; a desconfiança que o desconhecido provoca em todos aqueles que não se dispõem a aceitar a diferença com a curiosidade da descoberta, mas preferem antes construir muros de medo por detrás dos quais vão reforçando os preconceitos com que se barricam nas certezas de uma igualdade forjada. Mas Ruy era um menino e na sua pureza inicial parte à descoberta destes homens e mulheres que o acolhem serenamente no seio da sua caravana. Juntamente com Gela, a menina cigana, ele vai descobrir algumas palavras de romani, vai conhecer tradições ancestrais, superstições e também vai aprender a dialogar com os seus medos, num discurso que só as crianças aceitam sem questionar. Contudo, o que ele vai, sobretudo, compreender é que apesar de séculos a viverem separados, ciganos e não ciganos partilham o mesmo espaço e, como tal, a troca de conhecimentos e de experiências é inevitável. Por isso, ela ensina-o a não ter medo dele próprio, a confiar na sua destreza, e ele, Ruy, ensina Gela a ler e a escrever, a contar, a adquirir as ferramentas necessárias à sobrevivência na sociedade maioritária. E à noite, todos se juntam à volta da fogueira e partilham a alegria de se conhecerem, através da música e das histórias contadas pelos anciãos. O domínio da aceitação pressupõe uma vontade de conhecer o Outro, dando-lhe espaço para se revelar em todas as suas vertentes, não partindo nenhuma das partes com ideias sólidas sobre uma verdade única e arrasadora das diferenças, mas antes procurando os pontos de contacto como forma de aproximação e as diferenças como lugares de diálogo.

           “Nem santos, nem diabos”, é neste registo que devemos avançar no conhecimento e na aceitação do Outro, com quem partilhamos o lugar geográfico, mas que tantas vezes vive afastados e isolado, em espaços de exclusão e marginalidade, permanecendo desconhecido nos costumes e nas crenças, desprovido de ferramentas que lhe permitam aceder a uma integração plena em que a sua identidade seja respeitada e deveras valorizada. Maria