Que se lixem as flores!
Miguel Cardoso
(Professor de Filosofia no Agrupamento de Escolas do Fundão)
Chega o Dia da Mulher e calha sempre levarmos em cima com uma catrefada de discursos de circunstância. Ocos e redondos. Os do costume. Que as mulheres isto e que sem elas aquilo, o muito que tem sido feito e o mais que ainda falta fazer, mas agora é que é, que já é tempo de passar das palavras que o vento leva às acções gravadas em pedra. Depois, vai-se a ver… e nada. Ou pouco e devagar. Às vezes, mesmo um passo atrás. Ou dois ou três. Ainda a propósito do Dia da Mulher (que é hoje e ontem e amanhã e sempre), partilho da ideia de que a denominada (e tantas vezes vilipendiada) cultura de massas e, no caso específico que aqui me importa, a ficção de massas, pode desempenhar um papel decisivo na capacitação das mulheres, ao assumir e promover personagens femininas poderosas e não estereotipadas. Começamos por estranhar, mas acabam por se entranhar (já dizia o outro) e normalizar.
Isso tem vindo a ocorrer em alguma banda desenhada (Jessica Jones, Elektra, Black Widow, Harley Quinn), mas mormente em séries televisivas como Game of Thrones (com Cersei Lannister, Daenerys Targaryen, Sansa Stark, Arya Stark, lado a lado com Tyrion e obliterando as demais personagens masculinas) ou The Walking Dead, com um bom punhado de mulheres fortes e com as quais facilmente nos identificamos. É o caso de Michonne, Maggie, Rosita, Alpha, Lucille, Judith e Lori, mas sobretudo Carol (interpretada por Melissa McBride), que começa por ser uma esposa submissa e vítima de violência doméstica até se transfigurar na bad ass motherfucker que hoje conhecemos. É certo que na primeira temporada os papéis estão claramente definidos de acordo com uma sociedade de índole patriarcal, em que os homens saem para explorar, encontrar alimento e esmagar crânios de walkers, cabendo às mulheres tomar conta das crianças, lavar roupa, cozinhar e gritar por socorro. No entanto, pouco a pouco, a pulso, as mulheres vão conquistando importância e espaço narrativo. Sim, bem sei que isto resulta também da necessidade comercial de chegar a um público mais vasto e de acompanhar o vento que sopra – não somos ingénuos -, mas não deixa de ser um facto. Mesmo que o fim não seja o mais puro, vale aqui o bem maior.
Carol ganha protagonismo pela quarta temporada (e que não tem na BD) e é hoje uma das mais temíveis personagens da série. Chega a assumir o papel de uma espécie de anti heroína, uma categoria da qual (com poucas excepções) as mulheres costumam ver-se arredadas. É maquiavélica e executa acções moralmente duvidosas, sempre capaz de dar o passo que mais ninguém ousa. Veja-se, por exemplo, o embate entre ela e Alpha (interpretada por uma Samantha Morton em modo psicopata). Carol é uma filha-da-mãe, portanto. Mas a nossa (minha) filha-da-mãe (deixando a anos-luz o mortiço e melodramático Rick Grimes).
The Walking Dead não é uma série perfeita (longe disso, não têm conta as vezes que exasperei), mas depois de dez temporadas lá nos vamos afeiçoando às personagens. Vai para uma boa meia-dúzia de anos que Carol é a minha preferida (a família não me deixa mentir). Num apocalipse zombie gostaria de estar a seu lado.
Se puderem, não deixem também de espreitar Jessica Jones (a BD ou a série), outra personagem que vale bem a pena descobrir e que surge em pé de igualdade com os homens, seja na relação com Luke Cage, seja no confronto com o manipulador Kilgrave. São séries que colocam na linha da frente mulheres que não cabem na personalidade unidimensional habitual. Jessica Jones e Carol não estão aqui para fazer sandes a ninguém e estão pouco se lixando para as flores. A capacitação feminina precisa de mais badass women como estas. A igualdade também passa por aqui.