Trabalho emocional com sobreviventes de violência doméstica: reflexões a partir de um projecto em curso
Amélia Augusto, Departamento deSociologia, UBI; CIES-IUL
Enquantorepresentante da Universidade da Beira Interior na parceria do projeto “RasgarSilêncios – escrita autobiográfica com mulheres sobreviventes de violência degénero e doméstica”, e particularmente enquanto socióloga, tinha umcompreensível interesse em participar nas oficinas de escrita autobiográfica,por elas implicarem um trabalho direto e próximo com as mulheres, e pelopotencial transformador que reconhecia à metodologia. E assim tem sido, desde oinício das sessões, assumindo o papel de facilitadora, mas também movida por uminegável interesse científico.
Estetexto procura dar conta de um conjunto de questões e inquietações que oenvolvimento nas oficinas me tem vindo a suscitar, num exercício autorreflexivoque aqui materializarei pela primeira vez, de uma forma necessariamente breve eincompleta, e que espero desenvolver noutro contexto. Muitas das reflexões equestionamentos foram feitos em conjunto com a Graça Rojão, com quem partilho acondução das sessões, a formação académica e a veia emocional. Foram muitos osmomentos em que partilhámos dúvidas sobre o andamento e as implicações dotrabalho que desenvolvíamos nas oficinas de escrita.
Sendosocióloga e investigadora, conheço a especificidade e as dificuldades dedesenvolver estudos qualitativos em tópicos sensíveis e junto de gruposvulneráveis. O trabalho com vítimas de violência doméstica providencia umailustração nítida das questões que se relacionam com o risco inerente, com aconfidencialidade, com a revelação, com os princípios éticos, com a necessidadee as dificuldades de um consentimento realmente informado e esclarecido. Aprimeira preocupação após a aprovação do projeto foi a sua submissão à Comissãode Ética da UBI, não apenas para ter o respaldo de uma comissão desse tipo, mastambém para obtermos uma avaliação independente dos nossos procedimentos, tendoo pedido obtido aprovação. Mas foram as questões que não encontramosfrequentemente num manual de investigação e que não pertencem aos processosformais no desenho e condução dos projetos que se foram impondo e povoando asnossas conversas de balanço das sessões.
Aescrita é a base das oficinas, mas é também difícil, por não ser imediata,exigir reflexão e permanecer muito para além das palavras ditas. Muitas vezes nosquestionámos se o método resultava, se tinha a capacidade de rasgar silêncios,resgatar memórias dolorosas e transformá-las, dar-lhes novo significado; se oque fazíamos ali conduzia efetivamente ao empoderamento daquelas mulheres, ouse os efeitos se esgotavam na partilha de experiências e no convívio que todaspareciam procurar. Nunca quisemos fazer da violência o centro das sessões,aliás, a literatura recomendava que não o fizéssemos. A intenção era que cadauma contasse a sua história de vida, momentos ou episódios da mesma, por meioda escrita. Estávamos preocupadas em trabalhar o sofrimento, sem causar maissofrimento. Mas a verdade é que, intermitentemente, o tema da violênciairrompia, impunha-se, sobretudo quando conversavam. E, um dia, tivemos de dizer“hoje vamos falar da violência” e foi como se uma torrente se soltasse. Paramim, significou que, em dados momentos, ninguém melhor do que quem partilhatempo, emoções e verdades indizíveis no terreno para tomar decisões que podemmesmo ir no sentido contrário ao indicado nos manuais.
Aincerteza da efetividade do nosso trabalho foi sendo uma constante ao longo dassessões, causando uma angústia que nos impelia a repensar estratégias, aredefinir planeamentos. Até que fomos chegando às sessões finais, em quefazíamos o balanço das atividades com as mulheres. E mesmo após termos sidotestemunhas de tanta dor, tanta humilhação, do rasgar de tantos silêncios, foinesse momento que não conseguimos conter as nossas emoções, e por instantesparecíamos ter trocado de lugar com aquelas mulheres, que procuravam perceber omotivo de tal comportamento. E era simples, foi uma reação a ouvi-las falarsobre o que as oficinas de escrita tinham significado para elas, o que lhestinham permitido, o que tinham mudado dentro de si. Nunca poderíamos terantecipado que o processo pudesse ter culminado numa catarse por parte dasfacilitadoras.
Eisto conduz-me a uma reflexão final, relativa ao modo como os projetosenvolvendo temas sensíveis e grupos vulneráveis podem impactar tanto em quemneles participa, como em quem os conduz. A vulnerabilidade e a angústia acabampor ser partilhadas pelos dois lados, já que frequentemente somos confrontadascom as nossas próprias emoções, com a zanga e o sofrimento que os relatos causavam,com sentimentos de incerteza e impotência. Mas dessa experiência resultoutambém a convicção de que o envolvimento emocional é uma competência paraconstruir uma relação próxima e bem-sucedida com mulheres vítimas de violênciadoméstica, e de que o trabalho de investigação não é apenas um trabalhointelectual, deve ser também um trabalho emocional.